Woody Allen em Nova York: "A Outra" (1988)

A Outra (1988): Até hoje, o melhor drama da filmografia de Woody Allen, com Gena Rowlands numa atuação perfeita!

A Outra: O filme

“Se ao completar 50 anos, me perguntassem sobre a minha vida, eu diria que alcancei um nível decente de realização, ambos, pessoal e profissionalmente. Além disso, não sou do tipo curiosa. Não que tema descobrir o lado negro da minha personalidade, mas acredito que se algo está funcionando, o melhor é deixar quieto.”

O filme A Outra (Another Woman, 1988) começa com a protagonista, Marion Post (Gena Rowlands, maravilhosa neste papel!), falando sobre a vida satisfatória que leva. Ela mora em Nova York, é casada com um renomado cardiologista, trabalha como diretora da Escola de Filosofia de uma prestigiada faculdade para mulheres e pode se dar ao luxo de se licenciar do emprego para escrever um livro. Além disso, Marion tem um pai idoso, mas saudável, um irmão com quem sempre se deu bem, uma enteada que a idolatra e um círculo de amigos intelectuais com os quais pode ter discussões filosóficas. O que mais poderia querer da vida aos 50 anos de idade?

Como Marion nos esclarece, ela não é do tipo curiosa, logo, não vai pensar no assunto e procurar por respostas por conta própria. Mas, no íntimo, é possível perceber que algo a incomoda. Para fazê-la pensar a respeito, foi preciso que o destino agisse e colocasse as dúvidas sobre a sua vida na sua frente. Vejamos como.

Para se isolar de ruídos externos, Marion alugou um apartamento em Downtown e ali começou a trabalhar em seu livro. No entanto, palavras dos pacientes de um psiquiatra do imóvel vizinho ao seu começaram a chegar-lhe através do tubo de ventilação do prédio. Um desses pacientes era Hope (Mia Farrow), uma mulher grávida e angustiada, que explicava para o médico sobre o impacto de um sonho estranho que tivera.

“... e comecei a pensar na minha vida. Como se algo não fosse real, cheia de mentiras. Mas essas mentiras tinham se tornado tantas e faziam parte de mim agora, que eu não sabia quem eu era. Foi como se uma cortina tivesse se aberto e eu podia me ver claramente.”

Para Marion, escutar Hope era como escutar os seus próprios pensamentos, inclusive em relação ao seu casamento:

“Estou me questionando se fiz a escolha certa. Disse que havia outra pessoa. A última vez que o vi foi anos atrás. Antes de me casar, em uma festa.”

A fala de Hope faz Marion lembrar-se de Larry (Gene Hackman), o escritor por quem ela se apaixonou, mas que rejeitou para manter seu noivado e casar-se com Ken Post (Ian Holm).

Subitamente, nos dias seguintes, Marion começa a perceber e a ouvir coisas sobre a sua realidade que jamais encarou antes:

  • O marido que evitava ficar a sós com ela e ocupava as noites de ambos com jantares com outros pares de amigos;
  • A cunhada que lhe confidencia que o marido, Paul (Harris Yulin), admira Marion, mas também a detesta. Detalhe: na juventude, Paul foi abrigado pelo pai a abrir mão da carreira dos seus sonhos e trabalhar em algo que não queria só para a família poder investir no futuro de Marion;
  • A melhor amiga da adolescência, Claire (Sandy Dennis), que confessa ter se afastado de Marion por inveja e ciúmes do sucesso dela com os rapazes (particularmente, com um pela qual Claire estava interessada, mas que só tinha olhos para a amiga).

Diante de tantos pensamentos conflitantes com a sua imagem de realidade perfeita, Marion começa a procurar por algo em sua vida, mas ainda não sabe o que é. As respostas não demoram a aparecer.

Um dia, quando entra numa loja de antiguidades para comprar um presente de aniversário de casamento para dar ao marido, Marion encontra Hope, chorando ao olhar a tela Hope I (1903), em que Gustave Klimt pintou uma mulher grávida como ela. Hope está angustiada com a possibilidade de trazer uma criança para este mundo e Marion tenta confortá-la. As duas saem dali, visitam uma galeria de arte e, depois, vão almoçar juntas. No restaurante, Marion se abre para Hope sobre o avançar da idade e os arrependimentos ao longo da vida, principalmente o de não ter tido filhos.

“Eu não pensei em nada aos trinta. Todos achavam que iria. E aí me disseram que os quarenta acabariam comigo, mas estavam errados. Não pensei duas vezes. E então me disseram que os cinquenta me traumatizariam. E estavam certos.”

Durante o almoço, outra faceta da vida se apresenta para Marion. No mesmo restaurante, ela vê o seu marido com a amiga deles, Lydia (Blythe Danner), se tratando de forma íntima, com olhares afetuosos e mãos se acariciando. Marion, então, vê claramente o que tentava evitar de si própria: que precisava mudar sua vida e isso começaria pelo próprio casamento.

Primeiro, Marion pediu o divórcio, mas fez questão de manter a amizade com a enteada, Laura (Martha Plimpton). Depois, ela procurou o irmão e pediu-lhe uma chance de serem mais próximos. E então, ela se dedicou ao seu livro. Como com Larry ela não teria mais chances, visto que ele estava casado, tinha uma filha e era feliz vivendo no Oeste, ela tomou coragem para, finalmente, abrir o romance que ele escreveu e onde incluiu uma personagem inspirada nela: Hlenka.

No livro de Larry, o personagem principal (inspirado nele) conta que se apaixonou por Hlenka à primeira vista, mesmo ela sendo comprometida com um amigo seu. Um dia, ele e Hlenka se encontraram por acaso e ele a convidou para beberem algo.

“Foi o único tempo no qual estivemos a sós. Ela era adorável e eu falei muito e muito rápido, pois estava envergonhado de meus sentimentos para com ela, os quais sentia serem óbvios.”

Quando deixaram o bar, os personagens foram caminhar no Central Park, onde conversaram sobre um livro que ele estava escrevendo e o noivado dela, momento em que ele percebeu que ela estava tentando convencer a si mesma de que queria aquele casamento. Uma chuva os pegou de surpresa e os fez procurar abrigo. Ali, sozinhos, ele não conseguiu esconder seus sentimentos e a beijou.

“O seu beijo foi cheio de desejo e eu sabia que não poderia dividir esse sentimento com mais ninguém. E então, eu fui isolado. Mas era tarde, pois agora eu sabia que ela era capaz de se apaixonar, se apenas se permitisse sentir.”

Permitir-se ter sentimentos ou emocionar-se foi algo que Marion evitou a sua vida inteira, desde à sua infância. Mas que, a partir daquele momento, aos 50 anos de idade, ela estava disposta a não cometer mais esse erro. E assim ela termina a sua história:

“Eu fechei o livro e senti uma estranha mistura de satisfação e esperança. E questionava se a memória é algo que se tem ou algo que se perde. Pela primeira vez em muito tempo, eu me senti em paz.”

Locações do filme A Outra

Central Park

Marion e Larry passeiam pelo Pond quando são surpreendidos por uma chuva e buscam abrigo no Inscope Arch (Fotos das locações: Fran Mateus).

Dois lugares do Central Park foram usados na cena do passeio entre os personagens inspirados em Larry e Marion: The Pond e Inscope Arch.

  • The Pond: depois de tomarem um drink juntos, o personagem inspirado em Larry e Hlenka, inspirada em Marion, caminham ao longo deste lago, numa tarde nublada e romântica e tendo como companhia apenas alguns patos. Na vida real, no entanto, essa tranquilidade é quase impossível de ser testemunhada, por causa da localização estratégica da área, que fica ao lado de uma das principais entradas do parque:a Central Park South com a Fifth Avenue.
  • Inscope Arch: na continuação da cena do Pond, os personagens do livro são surpreendidos por uma chuva e buscam abrigo no Inscope Arch. Ali, o homem toma coragem e beija a amada. No início, ele é correspondido, mas logo Hlenka/Marion se dá conta do que está fazendo e o afasta. O belo arco de granito rosa e cinza, que deu cobertura para o beijo da dupla e liga o lago Pond ao zoológico do parque, tem estilo neogótico e é mesmo um cenário poético na vida real. Nele, casais apaixonados tiram fotos românticas como recordação dos momentos que estiveram no parque mais famoso do mundo. Acesso pela Fifth Avenue e Central Park South. Metrô: Fifth Avenue.

Cherry Lane Theatre

A fachada do Cherry Lane Theatre (Foto: Fran Mateus) e cenas de A Outra rodadas nele.

Este teatro, que é o mais antigo do circuito off-Broadway em operação, foi exibido em dois momentos de A Outra. Primeiro, na cena em que Marion reencontra Claire e o marido dela na frente dele e todos vão conversar num bar (É nesse encontro que Claire declara o quanto se ressente de Marion, desde a juventude de ambas, e que se afastou de propósito). Depois, o teatro é exibido na cena em que Marion sonha que a sua vida — os seus relacionamentos com Ken, Larry e o primeiro marido — está sendo representada naquele palco.

Ocupando um prédio datado de 1836, o Cherry Lane foi aberto, em 1924, pela poetisa Edna St. Vincent Millay (essa escritora tem um de seus livros nas mãos da personagem de Mia Farrow, em Simplesmente Alice). As primeiras peças representadas nesse palco foram inspiradas em trabalhos escritos por F. Scott Fitzgerald, John Dos Passos, Gertrude Stein e T.S. Eliot. Já entre os artistas que ali atuaram estão Gene Hackman (na vida real e neste filme, A Outra), Barbra Streisand, Tony Curtis, Gary Sinise e Geraldine Page. Onde: 38 Commerce Street; metrô: Christopher Street.

Paralelos do filme A Outra com Morangos Silvestres

Fã confesso do trabalho de Ingmar BergmanWoody Allen se inspirou na história de Morangos Silvestres (1957) para criar o roteiro de A Outra. Apesar do filme sueco ser protagonizado por um médico na casa dos 80 anos de idade, Isaac (Victor Sjöström), e o de Allen por uma mulher que acabou de completar 50 anos, ambos personagens se encontram numa situação de vida semelhante e narram as suas próprias histórias. Confira alguns paralelos entre elas:

  • Ambos protagonistas se apresentam — e a suas famílias — através de porta-retratos.
  • Isaac tem um sonho estranho, onde contempla a própria morte, e começa a repensar sua vida. Marion, depois de escutar Hope falar sobre o sonho que teve, começa a repensar seu passado e as decisões que tomou.
  • Isaac sai de casa, em Estocolmo, para ir receber um prêmio em Lund (uma viagem de cerca de 6h35m de carro). Marion precisa sair de casa para escrever seu livro num lugar silencioso.
  • Isaac descobre, através de sua nora, que o filho o respeita, mas também o odeia. Marion descobre, através de sua cunhada, que o seu irmão tanto a admira como a detesta.
  • Durante sua viagem de carro para Lund, Isaac visita a casa em que sua família passava os verões e repassa momentos do seu passado. Marion visita o pai na casa onde ela cresceu e apresenta as pessoas da sua vida para a enteada através de fotos. Woody usa a técnica de Bergman de mostrar as coisas do passado acontecendo na frente do protagonista e o fazendo refletir sobre o impacto desses acontecimentos na sua vida atual.
  • Isaac e Marion encontram figuras mais jovens que os admiram. Para o médico, são os três jovens a quem dá carona. No caso dela, é Laura, a sua enteada de 16 anos.

O final de ambos os filmes são, relativamente, parecidos: sabemos que Isaac e Marion, depois de darem seus primeiros passos para corrigir falhas do passado, se sentem melhor. Isaac tenta resolver sua situação com o filho, a nora e a empregada; Marion faz o mesmo com o irmão. 

Detalhe: a cena em Woody Allen registra o momento de reconciliação entre os irmãos é tocante: de poucas palavras, a comunicação entre Marion e Paul é sutil, feita através de olhares e gestos, como ele aceitar que a irmã faça parte de sua vida colocando a mão no ombro dela e ela retribuir, colocando a mão no braço dele.

A Outra: Comentários finais

“Coloquei na Marion tudo o que senti ao entrar nos cinquenta. Levei pelo menos um ano para superar.” (Conversas com Woody Allen, de Eric Lax)

Woody Allen tinha entre 52 e 53 anos quando dirigiu e lançou A Outra. Por isso, é compreensível que ele tenha colocado neste filme uma reflexão sobre a história dos seus sentimentos, naquele momento da sua vida. O que acabou se transformando, na minha opinião, num belo presente para quem o assiste.

Eu penso que, independente da idade do espectador, a história de Marion (assim como a de seu antecessor Isaac, em Morangos Silvestres) é um convite à reflexão sobre nossas decisões passadas, onde elas nos trouxeram e quais ajustes de rota ainda podemos fazer, se necessário, para corrigir um pouco o rumo das coisas. 

Com um roteiro abordando um tema tão profundo para o ser humano e atuações espetaculares, eu considero A Outra não só o melhor drama realizado por Woody Allen ao longo de sua carreira como um dos melhores filmes da História do Cinema.

📙✈As locações deste filme também fazem parte do meu guia de viagens Nova York de Woody Allen, disponível na Amazon.

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